por David Ely
Perdi a conta de quantas vezes já ouvi o termo ‘contextualização’ e, portanto, perdi a conta de quantas vezes esse termo me deixou confuso e mais do que um pouco suspeito (o número nos dois casos sendo igual).
Um exame completo do conceito de ‘contextualização’ levaria muito mais tempo do que eu tenho disponível no escopo deste artigo. Tal discussão precisaria percorrer a epistemologia, a doutrina das Escrituras, uma discussão sobre a natureza da lei bíblica, e até certo ponto tocar em convicções escatológicas. Teria que interagir com numerosos escritores, missiólogos, teólogos (tanto ortodoxos quanto heterodoxos) e lidar com uma série de redes de plantação de igrejas modernas, vários grandes nomes do mundo evangélico, e presumivelmente correntes de pensamento com as quais ainda não tive contato.
Este artigo é simplesmente minha tentativa de colocar por escrito questões que tenho quanto ao conceito de contextualização, tal como é comumente ensinado aos cristãos evangélicos que, pelo menos teoricamente, estão comprometidos com a inerrância das escrituras. Isto é, a idéia tal como é ensinada e recebida pelo crente cotidiano e pensador.
Para nossos propósitos então:
A contextualização é uma tentativa de adaptar a apresentação e a aplicação da mensagem do evangelho de uma maneira que a torne culturalmente compreensível para aqueles que você está tentando evangelizar.
“Traduzimos as palavras antigas da Bíblia para serem entendidas pelo novo leitor”, diz o argumento, “agora é hora de traduzir a cultura também.”
“Afinal,” para dar o próximo passo inevitável, “em Atos 17 Paulo olhou em volta de Atenas e descreveu o evangelho em termos que os atenienses entenderiam.”
Até aqui, há muito pouco a que se possa fazer objeção. Acho que a exposição de Atos 17 está carregando mais peso neste argumento do que pode suportar, mas, em geral, o ponto é concedido. A comunicação requer um meio, e esse meio deve conectar-se em ambas as extremidades para que alguém entenda o que está acontecendo.
O problema é que essa definição aparentemente inofensiva de contextualização torna-se a ponta de uma cunha que carrega consigo uma série de coisas que, na melhor das hipóteses, deixam a igreja incapacitada em suas tentativas missionárias, e, na pior das hipóteses, leva ao relativismo moral e epistemológico que é totalmente alheio à verdade revelada nas escrituras.
Uma vez que o termo ‘contextualização’, e com ele uma versão amena do conceito, tenha sido considerado ‘seguro’ para os crentes evangélicos, é muito fácil para uma série de outras coisas serem contrabandeadas sob suas asas.
No restante deste artigo, pretendo expor um pouco desse contrabando de conceitos.
Contrabando da Contextualização
Uma das partes-chave de uma cosmovisão dentro da qual a contextualização é possível, e até mesmo desejável, é a ideia de que há vastas extensões da existência humana que são religiosamente e moralmente neutras. De fato, esse mito da neutralidade é tão central para a forma como muitos imaginam a contextualização hoje que não acho que ela seja capaz de existir sem ele. A roupa é moralmente neutra, a comida é moralmente neutra, toda estética é moralmente neutra. Essas coisas, dizem, não têm uma maneira cristã de ser feitas, portanto, são todas legítimas. A única coisa que pode guiar as decisões nessas áreas é a preferência. Mas não a preferência pessoal ou individual, isso seria obviamente absurdo e obviamente guiado pelo desejo pecaminoso para que o edifício se mantenha de pé por muito tempo. Em vez disso, o único guia nessas áreas é uma ‘preferência cultural’ abstrata.
Muitas vezes, o mito da neutralidade se estende muito além da estética para áreas que geralmente consideramos mais substanciais, como educação, economia, o papel do governo. Não há como fazer essas coisas de uma maneira particularmente cristã (supõe-se), elas são moral e religiosamente neutras, podem e devem ser fluidas, flexíveis e quase totalmente alinhadas com o que a cultura receptora já conhece e ama.
Esse mito radical da neutralidade muitas vezes se estende até mesmo à prática da igreja. A autoridade na igreja deve atender às preferências da cultura receptora, a hinódia (ou a falta dela) deve conformar-se aos padrões da cultura receptora. Tudo isso é neutro, quaisquer padrões ou princípios estabelecidos são ‘acréscimos ocidentais’ e qualquer um deles deve ser deixado para trás quando se pensa que está atrapalhando a ‘comunicação do evangelho’.
Isso é agravado por uma tendência em círculos de contextualização de ter um relacionamento um tanto frouxo com a inerrância e autoridade bíblica. A introdução de ‘outra cultura’ pode fazer com que até mesmo aqueles que dizem estar comprometidos com a inerrância das escrituras abracem uma estranha mistura de epistemologias pós-modernas e visões sobre as escrituras.
Para alguns, a única coisa autoritativa na Bíblia assume a forma de uma mensagem secreta, um significado essencial oculto dentro de um texto cheio de erros. As palavras reais das escrituras são como a casca externa de uma noz que pode ser retirada para encontrar o que realmente importa, o cerne da verdade.
Para outros, a Bíblia torna-se uma expressão de idéias humanas sobre coisas que Deus fez no passado. Os atos de Deus eram a coisa autoritativa, a revelação verdadeira, e o que temos escrito são as reflexões de homens fortemente vinculados à cultura, cuja perspectiva pode ser interessante, mas está indelévelmente marcada pelo seu ponto de vista.
A autoria divina tanto das escrituras quanto da história é esquecida, e a Bíblia torna-se um livro funcionalmente humano em tudo, exceto nos essenciais absolutos. Torna-se um livro levado pelos ventos mutantes da cultura, pelo poder bruto rival e pelas vagas efemérides de uma chamada ‘interpretação comunitária’.
Diga adeus à autoridade suprema das escrituras sobre todas as coisas. Deixe para trás qualquer noção de que as palavras da Bíblia são as próprias palavras de Cristo. Abandone a espada clarificadora do Espírito, autoritativa em todas as aplicações legítimas, e receba em seu lugar um ‘evangelho’ minimalista que às vezes (por pouco) toca no perdão dos pecados para a vida eterna e preenche o invólucro vazio com o que quer que atenda aos desejos da cultura.
Cristo vem com uma Cultura
Muitos contextualizadores afirmam que não estão fazendo nada de errado, afinal, não estão mudando a natureza do evangelho para atender seus públicos. Eles dizem isso porque mantêm o básico: somos pecadores, Jesus morreu na cruz e ressuscitou, agora podemos ser perdoados. E na medida em que mantêm essas coisas, então, louvado seja o Senhor. Há muitas tentações para abandonar até mesmo essas coisas, então é bom que tenham resistido a essas tentações.
Mas esses elementos básicos do evangelho sozinhos são um evangelho empobrecido. Tratar tudo o mais que a palavra de Deus diz como mais ou menos sem importância resulta em um evangelho truncado. Deixa a vida familiar, a vida cívica, a vida pessoal, até mesmo a vida eclesiástica, intocada pelo Senhorio de Jesus Cristo e intocada por sua palavra autoritativa. Talvez os contextualizadores tenham preservado o básico do evangelho intocado por muitas ameaças, mas descartar tudo menos o básico do evangelho, deixa a maior parte da existência humana intocada por ele.
Para os melhores desses contextualizadores, a Bíblia é autoritativa em tudo o que diz, mas, francamente, não tem muito a dizer.
Missionários e plantadores de igrejas precisam sair do hábito de tratar enormes trechos da Bíblia como meros acréscimos culturais. Eles precisam, em outras palavras, entender que a Bíblia não sai de uma cultura, ela traz uma cultura.
Muitas das formas cristãs do passado não são resultado de ‘imperialismo cultural’ ou ‘colonialismo’ ou algum tipo de hegemonia ocidental sobre a teologia. O canto de Salmos na igreja não é resultado de uma preferência ‘cultural’. A restrição do ofício de presbítero, pastor e cabeça de família aos homens não é uma peculiaridade cultural arcaica. Reunir-se em um domingo não é uma coisa “ocidental”. Estas são aplicações da palavra autoritativa de Deus, uma palavra que tem algo a dizer sobre tudo. Na medida em que essas coisas são ‘ocidentais’, é porque o Ocidente foi moldado pela palavra de Deus por tanto tempo, e não o contrário.
Cristo vem com seu Reino, esse reino tem uma cultura, e a forma dessa cultura é cada recanto e rincão da palavra de Deus fielmente aplicado à situação em questão.
Alguns pensamentos finais
Talvez alguns leiam tudo o que eu disse até agora e entendam que estou dizendo que podemos simplesmente pegar tudo de um lugar e transpor para outro lugar e, voilà, nosso trabalho está feito. Não é isso que estou dizendo. É preciso um trabalho árduo para aplicar as normas imutáveis das Escrituras e aplicá-las às diversas situações em que nos encontramos. Envolve entender os princípios normativos das Escrituras e uma compreensão íntima da situação à nossa frente. Na medida em que as situações diferem, os detalhes da aplicação das escrituras também podem parecer diferentes. Mas isso é uma perspectiva muito diferente da ideia da maioria das contextualizações modernas, a ideia de que realmente não há muitos princípios na Bíblia para serem aplicados em primeiro lugar.
Também não estou dizendo que os missionários ocidentais sempre aplicaram corretamente as Escrituras às situações diante deles. No entanto, suas falhas não foram falhas em contextualizar. Muitas vezes, foram simplesmente falhas em entender as Escrituras.
Para dar um exemplo que ouvi: o caso de missionários ocidentais convertendo chefes tribais polígamos.
Diz-se que esses missionários ocidentais, sem saber o que fazer com um novo cristão que já tinha várias esposas, disseram a seus novos convertidos que agora deveriam afastar todas as esposas, exceto a primeira. Uma esposa que de repente se encontra sem marido geralmente não está em uma boa posição. E assim, diz-se, esses missionários pareciam estar destruindo famílias e deram ao evangelho um mau nome. Se ao menos tivessem entendido a cultura mais claramente, não teriam falhado em comunicar o evangelho!
No entanto, isso não é uma questão de contextualização e não conhecer a cultura, é um exemplo de não conhecer a Bíblia! Tais homens deveriam ter em mente os princípios bíblicos de lidar com a poligamia o tempo todo, pois se você está determinado a aplicar toda a Bíblia, há muitos desses princípios em exibição prontos para aplicação (por exemplo, Ex. 21:10, Deut. 21:15-17, bem como 1 Tim. 3:2).
Em conclusão, então, deixem-me simplesmente lhes exortar que fiquemos em guarda contra qualquer estratégia que busque diminuir a inerrância, autoridade ou (crucialmente neste caso) a aplicabilidade da palavra de Deus em todas as partes.
E fiquemos atentos à possibilidade de que ideias aparentemente inofensivas possam ser usadas para contrabandear todo tipo de mal. Contrabando que nos deixaria não apenas ineficazes em nossos esforços missionários e de plantação de igrejas, mas também nos deixaria em risco de abjeta infidelidade e apostasia.
Originalmente publicado David Ely Substack.