
Desconstruindo a vulgarização do sagrado
Nos últimos dez anos, no Brasil, temos visto uma crescente cultura de incentivo ao estudo teológico na Internet. Pessoas de diversas idades, desde adolescentes até mesmo adultos casados e com filhos, têm acesso a diversos materiais gratuitos.
De um lado, há produtores de conteúdo que, envolvidos pelo academicismo, apresentam uma teologia de forma popularizada e em tom professoral. De outro lado, há os espectadores que, após assistirem a uma série de vídeos de algum canal, já se consideram especialistas em um determinado assunto. Esse fenômeno tem dado origem a uma cultura crescente “pop gospel”, onde a teologia se tornou um entretenimento e objeto de debate, resultando na formação de facções intermináveis. Os participantes dessa cultura se envolvem em algo semelhante a um jogo de basquete, torcendo por seu time em busca da vitória.
Já era de se esperar, pois muitos influenciadores entre nós chamam a teologia de “esporte”. Infelizmente, os jovens não estão aprendendo mais sobre doutrina com os pastores de suas igrejas locais, mas sim com youtubers que resumem teologia ao mero academicismo, por meio de conteúdos popularizados. Talvez seja um pouco assustador falar dessa forma, pois muitos estão acostumados com esse modus operandi; afinal, foi por meio desse método que várias pessoas tiveram seu primeiro contato com a teologia.
Não seria correto me surpreender com o fato de que esse padrão teológico é o que atrai muitos, porque além de já ter me atraído anos atrás, é também resultado de uma sociedade dominada pela pós-modernidade, que é individualista, plural e vê o dogma de forma negativa. A prova disso? Os mesmos conteúdos produzidos pelos gurus, embora sejam conservadores e busquem refutar pregadores claramente heréticos, também defendem uma pluralidade de métodos de interpretação bíblica. No entanto, eles rejeitam abertamente diversos ensinos das confissões de fé históricas e, em alguns momentos, até mesmo dos credos ecumênicos.
Um exemplo disso é um youtuber muito famoso no Brasil, do nicho teológico (infelizmente, teologia tem sido tratada como “nicho”), que discordou abertamente sobre a eterna geração do Filho, conceito presente no Credo Apostólico, Credo Niceno e Fórmula de Calcedônia, que resumem a ortodoxia bíblica do cristianismo.
Esse modo de agir tem gerado pseudo-reformados que afirmam categoricamente serem reformados, mas que possuem resistência em relação aos movimentos de tradição reformada na história. Eles afirmam ser presbiterianos, mas rejeitam o sistema por trás dos símbolos de Westminster; se afirmam Continentais, mas não assentem as Três Formas de Unidade; se consideram Batistas Particulares, mas não gostam do padrão da Confissão Batista de 1689, pois acusam de “legalismo” e “proselitismo” membros que querem um padrão doutrinário e pastores que investem tempo na catequese do rebanho.
O motivo? Não apreciam se submeter à regras e, ainda que inconscientemente, olham o dogma como algo negativo, pois se renderam à pós-modernidade. Assim, abraçam a livre interpretação das Escrituras, achando que possuem o direito de interpretar a Palavra de Deus, algo que é função dos pastores e mestres em concílios (1Tm 4.16; 2Tm 10.5; 4.2–5; 2Co 4.2–5; Ef 4.11–12; Hb 5.12; 1Co 12.28–29), que foram vocacionados e receberam o preparo adequado, e não função dos demais membros.
Cabe ao membro abraçar o livre exame das Escrituras, assentindo à catolicidade reformada histórica. Isso envolve aprender com os pastores locais, em humildade e piedade, com o coração disposto e aberto (Dt 6.6; Tg 1.21) e ter uma postura semelhante à dos bereianos (At 17.11), examinando as Escrituras diariamente para ver se o ensino pregado de fato está sendo bíblico. Aqueles que [por exemplo] discordam de algum tema do Credo Niceno (Credo que inclusive foi usado posteriormente nos concílios reformados), adotam uma postura de arrogância ao se colocarem na perspectiva de uma abordagem mais moderna e atual, defendida por uma minoria em comparação com toda a história da igreja, pecando por heterodoxia.
Um fenômeno comum que tem crescido em nosso meio é a avaliação da qualidade dos teólogos com base em suas certificações acadêmicas. Muitos valorizam o grau acadêmico de um teólogo ao invés de sua piedade, confessionalidade e experiência, cedendo ao racionalismo moderno. Não estou negando a importância do estudo acadêmico aqui, pois Abraham Kuyper, como homem piedoso e caridoso, foi um excelente acadêmico.
Por outro lado, Francis Schaeffer, pastor da Bible Presbyterian Church e fundador do L’Abri, foi um excelente obreiro, embora não tenha sido acadêmico. A academia é um meio para glorificar a Deus, mas não um fim em si mesma. A qualidade da teologia reside em sua confessionalidade, catolicidade e ortopraxia, não em seu currículo. De que adianta ser doutor em teologia sistemática se seu projeto de pesquisa é conduzido pelas obras de Paul Tillich? Tal pesquisa tratará Deus como conceito, não como Três Pessoas divinas. Não estou insinuando que os gurus da Internet usem Tillich, pois também não apreciam suas obras. Entretanto, qual é o benefício deles refutarem o liberalismo, neo-ortodoxia, nova hermenêutica e todos os seus pressupostos, mas adotarem o mesmo modus operandi? Ao normalizarem a teologia como um esporte, também normalizam o diálogo com ensinamentos errôneos e prejudiciais, promovendo o subjetivismo, pois não percebem que a teologia influencia na conduta, uma vez que nossa cosmovisão prescreve nossa ética e nossa ortodoxia se manifesta na ortopraxia.
Não estou negando que possa haver um diálogo saudável entre irmãos que discordam em pequenos aspectos, pois devemos estar unidos nas questões essenciais da fé, uma vez que somos católicos. O problema é que essa postura, quando adotada sem limites por uma geração de pseudo-especialistas que não compreendem os métodos hermenêuticos e aprendem uma teologia plural através de youtubers que laboram em erro, gera uma cultura de pessoas categóricas que terão suas condutas prejudicadas na igreja local e na sociedade, pois não possuem um filtro adequado.
Os pais da igreja, pré-reformadores, reformadores e escolásticos, tratavam a teologia como sagrada! Eles entendiam que a teologia sacra deve ser ensinada na igreja local através de credos, confissões e catecismos de forma comunitária, não individualista e subjetiva. O objetivo da teologia era a piedade como devoção a Deus e não o conhecimento pelo conhecimento. Se colocássemos Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Tomás de Kempis, João Calvino, Francis Turretin, John Owen e John Bunyan para dialogar com os gurus da bolha webcrente que possuem posição de destaque como influenciadores da cultura pop gospel, certamente veríamos posturas diametralmente opostas, com caminhos muito diferentes. Enquanto para esses homens havia uma forma correta prescrita nas Escrituras para adorar a Deus, para os gurus da Internet, tal debate é irrelevante. Enquanto para esses homens havia uma forma correta para ler as Escrituras, para os gurus da Internet, há formas diferentes de se ler as Escrituras. Enquanto, para esses homens, o estudo da Divindade era algo feito com muito temor e zelo, para os gurus, é um ganha-pão. Enquanto para Agostinho a Eucaristia era a centralidade do culto, para os gurus, não passa de um mero sinal desnudo.
Não é sem motivo que diversas igrejas no Brasil estão doentes! Era de se esperar que nosso cenário estivesse caótico, afinal, a teologia que se acostumaram por aqui é caótica. Vivemos em uma geração onde buscam sempre novidades, pois se esquecem que nem sempre o vinho novo é o melhor. Não importa qual tenha sido sua experiência, não importa quais vícios doutrinários você tenha desenvolvido durante sua história, não importa se determinado intelectual é arqueólogo, PhD ou portador de diversos diplomas e graduações, se a hermenêutica e a cosmovisão forem ruins, os frutos serão ruins. Será mesmo que os debates arrogantes nas redes sociais são fruto de um bom modus operandi? Será que é normal pessoas que acabaram de conhecer determinados assuntos promoverem discussões latentes com o objetivo de ganhar um diálogo? Será que é normal você discordar de uma doutrina clara nas Escrituras sem nunca ter ouvido algum pastor qualificado ensinar sobre? É normal você não abrir mão de determinados pensamentos apenas para preservar seus ídolos? Não! É verdade que tais erros tornaram-se comuns em nosso meio. Entretanto, isso não tira o fato de que continuam sendo erros graves. Não importa se muitos de nós se acostumaram com o conteúdo sensacionalista de youtubers, é necessário desconstruir tal hábito! Teologia é para edificação do corpo, não para guerra de egos.
Se precisar de conteúdo mais robusto, peça indicações bibliográficas aos seus pastores, caminhe com mestres experientes, matricule-se em um seminário bíblico com a bênção de sua liderança ou em um bom programa de tutoria, acompanhe produtores de conteúdo na internet realmente qualificados, que pastoreiam e amam suas igrejas locais. Mas, tenha sempre uma postura de humildade, considerando a teologia como um meio para glorificar a Deus com uma vida piedosa. Devemos aprender teologia na igreja local em comunidade e não de forma subjetiva e individualista, submetendo-nos às confissões históricas com humildade, usufruindo da sã doutrina, ouvindo os ministros que nos pastoreiam, tendo como alvo a piedade e a santificação para amarmos a Deus nas esferas do mundo. Então, a teologia deve ser tratada como sagrada e não como um esporte? Exatamente! Finalmente, entendemos a questão.

