Deus é contra a bebida alcoólica? (Parte 1)

por Kenneth L. Gentry Jr

Nesta nova série de cinco partes, vou me concentrar na incômoda questão da cosmovisão bíblica: Será que a Bíblia condena o consumo de álcool? Eu creio que não, até porque Jesus transformou água em vinho. Mas a abordagem que eu vou seguir nessa série é para considerar as principais passagens que os evangélicos acreditam que condenam o consumo do álcool.

Diversas passagens bíblicas parecem, a partir de uma leitura superficial, implicar que todo o consumo de vinho é proibido. Eu vou focar nas nove principais passagens empregadas contra o argumento do consumo de álcool e fornecerei breves explicações mostrando que estas passagens se harmonizam perfeitamente com a minha afirmação de que Deus não proíbe o consumo.

Em Levítico 10:8-11 lemos: “E falou o Senhor a Arão, dizendo: Não bebereis vinho nem bebida forte, nem tu nem teus filhos contigo, quando entrardes na tenda da congregação, para que não morrais; estatuto perpétuo será isso entre as vossas gerações; E para fazer diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo, E para ensinar aos filhos de Israel todos os estatutos que o Senhor lhes tem falado por meio de Moisés.” Essa passagem claramente instituiu como um “estatuto perpétuo” para os membros do sacerdócio araônico que não deveriam ingerir bebida alcoólica ao entrarem no tabernáculo.

Observe as Qualificações

No entanto, contra aqueles que tentam usar essa passagem no debate atual, nós devemos apresentar duas importantes qualificações: (1) Essa proibição se aplica somente aos sacerdotes no sacerdócio (Arão e seus filhos); (2)  Só proíbe o uso de bebidas alcoólicas no exercício efetivo da função sacerdotal.

Josefo nota isto: “aos sacerdotes [Moisés] prescreveu a eles um duplo grau de pureza” (Ant. 3:12:1). Essa pureza especial incluía o seguinte: “nem lhes é permitido beber vinho enquanto usarem as vestimentas” (Ant 3:12:2). Os sacerdotes usavam apenas suas “vestes sacerdotais” (Ant. 3:12:2) durante a ministração: “quando ele entra no santuário” (Êx 28:2-4, 29), “quando entrar diante do Senhor” (Êx 28:30), “quando ele ministrava” (Êx. 28:35), “quando chegarem ao altar para ministrar no santuário” (Êx. 28:43).

Aparentemente Deus proveu essas leis como válvula de segurança para o sacerdócio, para prevenir qualquer profanação acidental no serviço do tabernáculo. O contexto mesmo exige tal interpretação, pois em Levíticos 10:1, nós lemos: “E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara.”

Os versículos 2 e 3 apresentam o resultado dessa profanação da função sacerdotal, e a razão para uma punição tão severa de Deus: “Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor. E disse Moisés a Arão: Isto é o que o Senhor falou, dizendo: Serei santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante de todo o povo. Porém Arão calou-se.” Nadabe e Abiú foram mortos porque eles ofereceram algo no altar que Deus não havia ordenado. Consequentemente, o sacerdote deve ser extremamente cuidadoso ao seguir as estipulações de Deus no santo serviço. Se o sacerdote tivesse permissão para beber antes ou durante o serviço sacerdotal, sua mente poderia não seguir cuidadosamente a ordem do serviço de Deus. (cf. Os. 4:11).

Portanto, essa passagem não tem nada a ver conosco hoje, pois nós não somos do sacerdócio araônico, que já passou (cf. Hb 9 e 10).

Uma Aplicação do Novo Testamento?

Apesar dessas observações, alguns argumentam que essa proibição continua sendo imposta aos crentes da era do Novo Testamento porque somos “reis e sacerdotes” (cf. 1Pe 2:5, 9; Ap. 1:6).

Citarei os argumentos de dois representantes dessa posição forçada, mas generalizada. Um é o proibicionista Stephen Reynolds; o outro é um abstencionista, Gleason L. Archer; ambos são estudiosos evangélicos de grande conhecimento. No caso de Reynolds, o foco não está na passagem atual, mas em Pv 31:4-5, que proíbe os reis de beber. A maneira e as suposições dos argumentos de ambos os homens são as mesmas, no entanto.

Referindo-se a Ap 1:16 (que ensina que os crentes são “reis e sacerdotes”), Reynolds afirma: “Segue-se, que se aceitarmos esta leitura [isto é, o Textus Receptus], que todos os crentes na Bíblia devem ser abstêmios, uma vez que o era exigido do reis no Antigo Testamento é exigido dos reis sob o Novo.” No parágrafo seguinte ele acrescenta: “Se os reis antigos foram avisados para não beberem intoxicantes para não se esquecerem da lei, os crentes modernos que desejam manter a lei de Deus em seus corações devem aceitar esta proibição como obrigatória para eles”.

De forma semelhante, e com um non sequitur espiritual idêntico, Archer nos informa que: “isso tem implicações para o sacerdócio do Novo Testamento de todos os crentes (1Pe 2:9) e sugere que eles podem ser seriamente prejudicados em continuar o trabalho de ganhar almas se eles pessoalmente se entregarem ao uso de álcool”.

Esta metodologia é inapropriada devido a inúmeros problemas. Algumas breves observações ilustrarão a natureza espúria de tal aplicação das Escrituras: 

Primeiro, se tal metodologia fosse apropriada, ambas disposições (relacionados a sacerdotes e reis) deveriam testemunhar contra nosso Sumo Sacerdote e Rei dos reis, Jesus Cristo. Como eu mostro no capítulo anterior, Jesus bebeu vinho. Essa evidência sozinha expõe o argumento ao reductio ad absurdum.

Segundo, mesmo no Antigo Testamento esta verdade espiritual (que os crentes eram reis e sacerdotes) é verdadeira. O Antigo Testamento é o pano de fundo para ambas as passagens de 1ª Pedro 2:5,9 e Apocalipse 1:16, pois se referem a Êxodo 19:6, onde lemos: “E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo.”. Contudo, o Antigo Testamento claramente permite que os Israelitas produzam, vendam e bebam vinho.

Terceiro, ambas proibições para os reis e sacerdotes eram limitadas: as proibições tinham efeito durante o atual exercício dos poderes oficiais. Levítico 10:9 particularmente ordena: “ Não bebereis vinho nem bebida forte… quando entrardes na tenda da congregação.” Uma limitação semelhante é fortemente implicada no raciocínio para a proibição aos reis em Provérbios 31:5: “ Para que bebendo, se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos.” A perversão dos direitos só poderia ocorrer com sanção oficial, ou seja, durante a atuação magisterial ou judicial. Deus proibiu beber vinho nestes limitados contextos com a intenção de prevenir frequentes corrupções provocadas por reis que atuam magistralmente enquanto estão embriagados (cf. Is. 28:7). A lei bíblica não proíbe vinho para os reis de maneira permanente e universal (cf Gn 14:18-20).

O máximo que podemos dizer destes argumentos é que, enquanto estiver no processo de levar adiante o trabalho de ganhar almas, o crente como um sacerdote de Deus não deve beber. Ou enquanto os anciãos estão judicialmente buscando a disciplina da igreja, eles estão agindo como reis e não devem beber.

Quarto, se permitirmos tal hermenêutica, que sentido poderíamos dar aos requisitos de Paulo para o presbiterato e ao diaconato? Anteriormente, vimos como os pré-requisitos excluem especificamente apenas os “dados a muito vinho” (1 Tm 3:8) e aqueles “ não dados ao vinho” (v3). Além disso, como poderíamos entender o “não vos embriagueis com vinho” de Paulo? Porque ele não disse: “Não bebam vinho”?

Traduzido por Michael Ferreira.

administrador

administrador

Scroll to Top